Direito Tributário
Descaminho
não é crime sem lançamento de crédito
27 de junho de 2010, 6h01
No descaminho, a simples
entrada ou saída do produto, por si só, não é crime, se o agente não ilude o
pagamento do imposto; enquanto, no contrabando, o crime se consuma com a
simples entrada ou saída do produto proibido, sem se falar em incidência de
tributos. Ambos são crimes materiais, porém no descaminho o núcleo do tipo está
na ilusão do pagamento.
Daí porque o descaminho é
um crime de natureza tributária, diferentemente do contrabando, conforme
explica Luiz Régis Prado:
“num enfoque moderno,
contrabando passou a denotar a importação e exportação de mercadoria proibida
por lei, enquanto que descaminho significa a fraude ao pagamento de tributos
aduaneiros. Diferenciam-se, pois, porque enquanto este constitui um crime de
natureza tributária, clarificando uma relação fisco-contribuinte, o contrabando
expressa a importação e exportação de mercadoria proibida, não se inserindo,
portanto, no âmbito dos delitos de natureza tributária. Assim, ao serem vedadas
a importação ou exportação de determinada mercadoria, a violação legal do
preceito estatal constitui um fato ilícito e não um fato gerador de tributos”.[23]
O contrabando, portanto,
segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.
Do que acima se expôs,
podemos traçar as seguintes etapas para o raciocínio conclusivo:
8.1) O fato de o descaminho
estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração
pública não obsta que tenha o mesmo tratamento jurídico conferido aos demais
crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 8.137/90. Todos os crimes
fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da
Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em
legislação esparsa.
8.2) O descaminho nada mais
é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a
operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em
parte, o pagamento de direito ou imposto") é exatamente o mesmo da
sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou
reduzir tributo").
8.3) Havendo decisões do
STF aplicando o princípio da insignificância em hipóteses de descaminho, fica
evidente a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, já que a
jurisprudência tem afastado a aplicação deste princípio nos casos em que se
busca proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública.
8.4) O descaminho é um
crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento
integral ou parcial do direito ou imposto. A simples leitura do tipo (art.334,
caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal.
A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com
essa finalidade.
8.5) A consumação de descaminho
exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a
autoridade competente apure e exija o crédito tributário que deixou de ser
declarado nessa operação, configurando a ilusão do pagamento.
8.6) O STF considerou o
prévio e definitivo lançamento tributário como elemento objetivo do tipo penal
nos crimes fiscais materiais (Súmula Vinculante n. 24). Esse preceito não
decorre da existência de um grau de comunicação entre as instâncias
administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de
dependência decisória daquela em relação a esta. Considerou-se simplesmente que
a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo,
é pressuposto para a própria ocorrência do crime.
8.7) Apesar de a Súmula
Vinculante n. 24 apenas fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista
no art.1º, I, da Lei 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento
jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, como é o caso do
descaminho.
8.8) A importação de
mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito
equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de
perdimento, consoante previsto no art.23, I e parágrafo 1º do Decreto 1.455/76,
com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto
6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).
8.9) Se a mercadoria
importada ou exportada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não
cabe cobrança de tributo a ela referente. E se porventura tiver havido
declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao
antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente
tenha adiantado ao fazer a declaração.
8.10) O confisco de bens é
incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma
espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem
a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou
a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio
desembaraço.
8.11) O Regulamento
Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação (art.71, III), diz expressamente
que não incide o imposto sobre mercadoria estrangeira que tenha sido objeto de
pena de perdimento. O mesmo ocorre em relação ao imposto sobre produtos
industrializados (arts. 238 c/c 570, parágrafo1º, II c/c 571 do Regulamento
Aduaneiro), assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a
COFINS-importação (art.250 c/c 71, III).
8.12) Não sendo hipótese de
incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de
imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.
8.13) Ao contrário do tipo
penal do descaminho (CP, art. 334, 2ª parte), que busca proteger a ordem
tributária consubstanciada na arrecadação de tributos, o tipo penal do art.334,
caput, 1ª parte, visa impedir a entrada no país de produtos considerados
nocivos sob vários aspectos, daí porque o contrabando segue sendo punível
independentemente de constituição de crédito tributário.
Em suma, para a
configuração do crime de descaminho, tal como tipificado no ordenamento
jurídico brasileiro (art.334, caput, 2ª parte), faz-se necessário que
tenha havido o lançamento definitivo do crédito tributário, de modo a se
identificar o tributo objeto de ilusão. Não constituído o tributo ou tendo
havido a decretação de perdimento de bens, não há justa causa para a persecução
criminal.
[1]
Conforme leciona Francisco de Assis Toledo, “os crimes complexos são em geral crimes
pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico
tutelado”. In Princípios básicos de Direito Penal, 5.ed., Saraiva,
p.145.
[2]
O latrocínio, por exemplo, apesar de ser um crime hediondo que atinge também a
vida, encontra-se tipificado no Código Penal no capítulo dos crimes contra o
patrimônio (art.157, §3º, 2ª parte), com destaque para o elemento subjetivo do
tipo, razão pela qual não vem sendo considerado como da competência do tribunal
do júri (Súmula 603 do STF).
[3]
Além de se referir aos crimes fiscais previstos na Lei n. 4729/65, o art.18,
§2º do DL 157/67 também determinava a extinção da punibilidade quando a
imputação penal estivesse relacionada a falta de pagamento de tributo.
[4]
“A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao
crime de contrabando ou descaminho por força do art.18, §2º, do Decreto-lei
157/1967”.
[5]
A doutrina considera que a expressão “pagamento de direito”, no art.334, está
“no seu sentido histórico, como apelido dos antigos gravames que pesavam sobre
importação (‘direitos de importação’, ‘direitos aduaneiros’ e ‘direitos
alfandegários’)”. Maximiliano Roberto Ernesto Führer e Maximilianus
Durval Carneiro Neto é juiz federal
substituto na 2ª Vara Criminal da Bahia, professor assistente na UFBA e mestre
em Direito Público pela UFBA.
Revista Consultor Jurídico,
27 de junho de 2010, 6h01
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